domingo, 18 de junho de 2023

Três poemas do livro COLECIONADOR DE PERDAS, de Héber Luciano

 



o danúbio azul
 

e se de repente todo velório

fosse realizado com o anfitrião

ainda vivo, consciente?

algo como um aniversário,

ou melhor, uma visita neonatal

às avessas, não um culto à morte,

mas uma celebração da vida,

da autobiografia concluída

(embora toda vida seja

uma obra incompleta),

não uma noite de autógrafos,

mas de últimos abraços.

 

o anfitrião de smoking,

ou, se preferir, a camisa do seu time

e a sua bermuda favorita, pois

não haverá tempo para formalidades,

não haverá razão para formalidades,

“ah! você veio!” dirá o anfitrião

a um antigo melhor amigo

que há muito o magoou,

já sem nenhum rancor, pois,

se ele não pode levar o relógio de prata

nem o Fiat Uno que pagou

em quarenta e oito prestações,

por que então levar ao além-túmulo

os rancores do mundo terreno?

 

ah não! os rancores seriam correntes

a serem quebradas para libertá-lo,

e o filho poderia pedir perdão

pelas visitas que não fez nesta década,

e a filha de quarenta e dois anos

poderia dançar com o pai,

pela segunda e última vez,

a valsa de debutante,

e haveria uma valsa para cada ex-namorada

(“eu sinto muito por —”

“ah! isso não importa!”),

 

e a iminente-viúva não teria ciúmes

porque a ela seria destinado

O Danúbio Azul,

à meia-noite, à meia-luz,

os dois girando no centro do salão,

a cauda branca do vestido dela

como nuvens a suspendê-lo,

e ao redor, flores, muitas flores,

rosas, lírios, margaridas, crisântemos —

enfim todas as flores que uma pessoa

jamais recebe em vida.


*

utopia

 

revê-la depois desta longa separação

e encontrar, intactas, a conexão e a ternura

dos velhos tempos, feito alguém que

se depara com uma música na rádio

após vários anos sem escutá-la

e percebe que ainda a sabe de cor

e sente a avassaladora emoção da descoberta

no ato de redescobrir.


*

divisão de bens

 

após o divórcio,

ficaram com ela a casa

e a guarda da filha.

com ele ficaram o carro

e a televisão de 58 polegadas.

 

ficaram com ela os livros

e o vira-lata caramelo.

com ele ficaram os quadros

e a estatueta da Afrodite.

 

ficaram com ela a cama de casal

e o espaço vazio do colchão.

com ele ficaram o videogame

e o joystick que sobrou.

 

ficou com ela o silêncio dele,

ressoando na casa

como uma peça de Chopin.

com ele ficou o silêncio dela,

rangendo no apartamento

feito unhas num quadro negro.

 

ficou com ela o perdão

para as desculpas

que ele nunca pediu.

com ele ficaram as palavras

que vieram tarde demais —

como a ambulância que chega

quando o paciente já está morto.

 

ficaram com ela o trauma

e um alívio vazio.

com ele ficaram o remorso

e uma liberdade inútil.

 

ficou com ela o hábito dele

de temperar a comida com limão.

com ele ficou o costume dela

de entornar creme de leite no miojo.

 

no vocabulário dela ficaram

as gírias que ele empregava.

na playlist dele ficaram

as músicas que ela escutava.

 

dos anos que viveram juntos,

ficaram na memória

pequenos instantes.

 

da paixão inconsequente

ficou a filha, e na menina ficarão

as covinhas e o cabelo da mãe,

os olhos e o sorriso do pai,

a presença constante da mãe,

a ausência constante do pai.

 

com a filha, que não tem culpa

dos equívocos do mundo adulto,

deve ficar integralmente

o amor que os uniu.

 

e na existência da filha

irá se concretizar

a promessa de eternidade

que os dois fizeram um dia.

*
SOBRE O LIVRO


COLECIONADOR DE PERDAS reúne 50 textos no estilo poema-crônica, escritos por Héber Luciano. Questões psicológicas e emocionais são o foco da antologia.

Temas existenciais, como solidão e morte, são destrinchados e condensados nestes poemas prosaicos. O amor, sobretudo em seu estado líquido, também é dissecado na antologia.

Os textos apresentam uma linguagem simples, mas com alta dosagem lírica, oferecendo ao leitor frases de impacto — seja por sua beleza ou por sua pungência.

Em resumo, COLECIONADOR DE PERDAS retrata a alma humana, com suas minúcias e contradições, desde a superfície luminosa até o âmago sombrio.