Héber Luciano nasceu em setembro de 1995, no Distrito Federal, onde se formou em Publicidade e Propaganda. Desde 2018 compartilha textos autorais na página Solidão Conjunta (@solidaoconjunta), no Instagram. Em 2020 publicou na Amazon o e-book homônimo, com 90 poemas, do qual foram extraídos os três poemas a seguir.
-
POEMA X
para mim, é conveniente fantasiar
que ela, ao partir, meteu-se numa caixa,
semelhante à de Schrödinger,
e agora se mantém num estado vivomorto,
ao mesmo tempo existindo e inexistindo.
parece-me menos doloroso
pensar nela como uma criatura interrompida —
uma criatura que existe apenas na minha memória
e que, em vista disso, não pode viver sem mim.
é uma fantasia desprezível, eu sei,
mas corrói-me a vaidade
imaginar que a vida dela não parou,
que meu coração não lhe é vital,
que outras pessoas estão ocupando
o lugar que me pertencia.
sim, eu sei que vida dela continua:
ela está experimentando novas sensações,
descobrindo outras músicas, lendo outros livros,
assistindo a novas séries e a novos filmes,
confiando os segredos a outros amigos,
destinando o futuro a uma nova paixão.
mas eu sou tão incorrigivelmente possessivo
que a enfio nesta caixa, semelhante à de Schrödinger,
e decreto a suspensão de sua existência —
eu não quero receber nenhuma notícia dela, boa ou ruim.
a felicidade dela soaria como algo pessoal
e injetaria doses cavalares de rancor na minha alma.
em contrapartida, a tristeza dela não me provocaria
sentimento algum,
exceto uma espécie de triunfo inútil, injustificável.
qual é a conclusão disso tudo?
eu não a amo, não a amei em nenhum momento.
se eu sofro, agora, não é por sua ausência,
mas pela privação dos benefícios
que sua presença me proporcionava.
ah! essa mesquinharia
que se fantasia de amor!
-
POEMA XC
de vez em quando
você faz alguma coisa
pela última vez
e não tem
consciência disso.
parece injusto
que não exista
aviso prévio,
não é?
uma ligação telefônica
é interrompida precocemente
porque você não sabia
que era a última.
se soubesse,
jamais desligaria.
estenderia a conversa
até o infinito.
se houvesse
aviso prévio
você faria com que
aquele último beijo — que parecia
apenas mais um beijo — durasse
eternamente.
jamais
desataria o nó
do abraço.
agora você lembra
aquele momento
e deseja
recuperá-lo.
tenta materializá-lo
de madrugada,
com os olhos apertados,
fantasiando
a possibilidade
de resgatar
as sensações.
mas não importa
quanta força
você empenhe:
o momento
está perdido,
bem como
as sensações
atreladas
a ele.
se você soubesse que
aquele encontro banal
ao meio-dia
de uma terça-feira
seria o último, teria dito
àquela pessoa
todas as coisas que
guardou para
uma ocasião melhor.
você só percebe que
não há ocasião melhor
do que o “agora”
depois de perder algo
para sempre.
e então
as palavras não ditas
ficam entaladas
na garganta
e ali vão permanecer
até o fim da vida
pesando,
engrossando,
virando crosta,
obstruindo
a respiração.
de vez em quando você faz
alguma coisa
pela última vez
e não se dá conta disso —
embora saiba que
absolutamente tudo
nessa Terra está fadado
a desaparecer.
a vida é efêmera.
um casal feliz
jurando amor eterno
é efêmero.
os amigos reunidos no bar,
zombando da rotina,
são efêmeros.
seu cachorro te recebendo em casa,
eufórico, com o rabo abanando,
é efêmero.
sua avó cozinhando o prato
que você mais gosta
é efêmera.
seus pais almoçando juntos
no cômodo ao lado
também são efêmeros.
a glória
e a desgraça
da existência
consistem em sua
finitude.
todo dia você faz
tudo pela última vez —
e o que se repete
é uma prorrogação que
a vida te concede.
-
POEMA XLIV
amor é inventar um dialeto particular,
incompreensível para quem escuta de fora.
amor é não conseguir se comunicar
com a única pessoa que te compreendia.
amor é escutar as músicas preferidas dela,
ainda que sejam de gosto duvidoso.
amor é detestar sua própria música preferida
porque um dia você a dedicou a alguém.
amor é desbravar as ruas da cidade
carregando-a sobre o quadro de sua bicicleta.
amor é tirar o celular do bolso e mudar de calçada
ao vê-la se aproximar do lado oposto da rua.
amor é juntar moedas de 10 e 25 centavos
para dividir um lanche na rodoviária.
amor é descobrir que ela se encontrava com outro
enquanto vocês se conheciam.
amor é confidenciar piadas e ponderações
usando a silenciosa força do olhar.
amor é ouvi-la confessar
que já não sabe o que sente por você.
amor é entrelaçar seus dedos com os dela
enquanto dirige sem rumo sob o céu estrelado.
amor é sorrir e cumprimentar o homem
que agora caminha de mãos dadas com ela.
amor é desabafar para ela as angústias
que você não compartilhou com mais ninguém.
amor é descobrir que a sua garota
saiu com um homem casado.
amor é reler as mensagens da noite anterior,
perguntando-se de onde veio essa menina.
amor é reler as mensagens de tempos distantes,
perguntando-se aonde foi parar aquela menina.
amor é confiar o seu coração
a uma caixinha de cristal.
amor é tudo o que toca a sua alma
para depois desaparecer.