utopia
revê-la depois desta longa separação
e encontrar, intactas, a conexão e a ternura
dos velhos tempos, feito alguém que
se depara com uma música na rádio
após vários anos sem escutá-la
e percebe que ainda a sabe de cor
e sente a avassaladora emoção da descoberta
no ato de redescobrir.
divisão de bens
após o divórcio,
ficaram com ela a casa
e a guarda da filha.
com ele ficaram o carro
e a televisão de 58 polegadas.
ficaram com ela os livros
e o vira-lata caramelo.
com ele ficaram os quadros
e a estatueta da Afrodite.
ficaram com ela a cama de casal
e o espaço vazio do colchão.
com ele ficaram o videogame
e o joystick que sobrou.
ficou com ela o silêncio dele,
ressoando na casa
como uma peça de Chopin.
com ele ficou o silêncio dela,
rangendo no apartamento
feito unhas num quadro negro.
ficou com ela o perdão
para as desculpas
que ele nunca pediu.
com ele ficaram as palavras
que vieram tarde demais —
como a ambulância que chega
quando o paciente já está morto.
ficaram com ela o trauma
e um alívio vazio.
com ele ficaram o remorso
e uma liberdade inútil.
ficou com ela o hábito dele
de temperar a comida com limão.
com ele ficou o costume dela
de entornar creme de leite no
miojo.
no vocabulário dela ficaram
as gírias que ele empregava.
na playlist dele ficaram
as músicas que ela escutava.
dos anos que viveram juntos,
ficaram na memória
pequenos instantes.
da paixão inconsequente
ficou a filha, e na menina ficarão
as covinhas e o cabelo da mãe,
os olhos e o sorriso do pai,
a presença constante da mãe,
a ausência constante do pai.
com a filha, que não tem culpa
dos equívocos do mundo adulto,
deve ficar integralmente
o amor que os uniu.
e na existência da filha
irá se concretizar
a promessa de eternidade